Santosh: A satisfação do dever cumprido 

Santosh -Vozes da Hierarquia (Foto: Reprodição/Looke)
Santosh -Vozes da Hierarquia (Foto: Reprodição/Looke)

Há algumas décadas que o cinema indiano vem sendo apreciado pelo público ocidental. Não apenas pela estética visual, mas com um recheio sonoro que lembra os grandes musicais da MGM dos anos 40. Não é à toa que o filme RRR – Revolta, Rebelião, Revolução (2022) conquistou o público americano, ganhando o Oscar de Melhor Trilha Sonora, além de indicações ao Bafta e ao Globo de Ouro, em que também ganhou o prêmio de Melhor Canção. 

Nada desse quadro da mágica que se faz em Bollywood, com filmes de todos os gêneros feitos com tom de opereta, reflete o trabalho que Sandhya Suri fez com Santosh -Vozes da Hierarquia.  Sandhya começou sua carreira com o documentário I for India (2005), que narrava o retorno à Índia de um médico, após anos vivendo na Inglaterra, mostrando todo o seu amor pelo país. 

Não queria, contudo, deixar de lado seu registro de imagens consolidado no cinema documental. Como estrutura, Santosh – Vozes da Hierarquia trafega com tranquilidade no realismo italiano, na nouvelle vague, francesa, e até no cinema novo brasileiro. Sua câmera capta toda a realidade do que acontece em volta da personagem central do filme, a jovem viúva Santosh Saini, feita com paixão por Shahana Goswami, que está na série de suspense A Hora Final (2021). 

Sandhya criou a história de Santosh baseada num crime de estupro que ocorreu em Nova Delhi. Aqui, vemos a viúva de um policial de Lucknow, a principal cidade do estado de Uttar Pradesh, onde vivem cerca de 240 milhões de indianos. É nessa região que está um dos maiores monumentos do país, considerado uma das Sete Maravilhas do Mundo, o Taj Mahal. 

No filme, por uma resolução do governo, as viúvas de policiais mortos em ação podem, se quiserem, assumir o trabalho do marido após passarem por um treinamento. Para manter sua casa e seu sustento, Santosh decide usar as botas do falecido marido, sem ser no sentido figurado. Sua área de atuação é quase burocrática, resolvendo questões domésticas no subúrbio da cidade. 

Tudo muda quando ela atende um pai desesperado, que fala sobre o desaparecimento da filha, mas que não tem respaldo entre os policiais que atenderam o caso. Dias depois, o corpo da garota é encontrado num terreno, colocando em Santosh o desejo de descobrir o responsável pela morta da garota. Comoção nacional pela violência a uma mulher? Não, apenas a burocracia estatal funcionando como sempre num país do terceiro mundo. 

Não pense que, agora, o filme usa da influência dos suspenses policiais ocidentais para criar o clima de uma tradicional investigação policial britânica. Falo isso porque a Índia foi colônia britânica por séculos, mas no cinema de Sandhya esse elemento nem é colocado em cena. A cineasta opta por uma visão mais realista, literalmente, documental do que vai acontecer na investigação. 

Mesmo não sendo levada a sério por seus superiores, Santosh acaba sendo apoiada pela inspetora Geeta Sharma, uma das poucas mulheres do departamento de polícia de Lucknow em posto de comado. Ela é interpretada pela veterana atriz Sunita Rajwar, na premiada série Aqueles Olhos Negros (2022). A investigação segue até um primeiro suspeito, que é preso e, pela “influência” policial, confessa o crime. Santosh, contudo, não acredita e acaba descobrindo a verdade, num momento em que a revelação pode não ser boa para sua carreira. Será, obviamente, o melhor para sua consciência.  

Sandhya não fez um filme para o público acostumado com os épicos musicais de Bollywood. Fez um cinema real ao estilo do que Glauber Rocha definiria como uma ideia na cabeça e uma câmera na mão para mostrar a realidade que todo indiano vive há séculos. É o sistema de castas, sutilmente criticado nessa produção, em que o trabalho da mulher é valorizado, mas até a página dois. 

O Santosh – Vozes da Hierarquia não é um filme fácil, embora sua trama seja simples e eficiente. Serve, com certeza, para mostrar outra realidade muito próxima aos rincões da pobreza social do Terceiro Mundo, algo que os brasileiros, em geral, sabem que existe. Poucos, contudo, não fazem nada para mudar. Um filme essencial para conhecer o cinema documental indiano, feito com rigor pelas mãos de uma cineasta que conhece o domínio dessa encantadora máquina de ilusões. 

O longa chega nesta sexta, 20, ao streaming Looke.

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